Cafona descornado.

Suelen Hahn
3 min readSep 16, 2021

Marcelo Camelo soube ferir com cada sílaba exalada na conclusão já óbvia: o amor acabou. “Veja bem, meu bem, sinto te informar que arranjei alguém pra me confortar.” Aquele sentimento ora jurado eterno, outrora afiançado pela separação por morte, se faz faltoso. E ficam as vivências e as caixas de papelão com cheiro de supermercado, todas cor de burro quando foge, tal qual a filha da puta. Que merda de vida! Quando foi que deixei de enxergar o que estava acontecendo? Que diabos fiz eu pra merecer isso? É a porra do feminismo, da revolução da vulva, das axilas peludas e dos peitos livres, balançando por meio dos brados das que concebem a vida. Na real, nada nem ninguém tem culpa, salvo a falta de comunicação. Ou melhor, de audição. Ela fazia cara feia e cuspia vocábulos ensandecidamente sonoros enquanto trotava da sala pra cozinha, da cozinha pra sacada, com seu cigarro aceso entre os dedos finos com unhas vermelhas. O indicador tem uma cicatriz linda que me traz a lembrança do jantar que acabou no pronto socorro graças à faca do chef recém trazida pelo Sedex. Mesmo com o dedo enfaixado, a desgraçada concluiu a ceia e me enlaçou com mesa, banho e cama. Nessa ordem. E com aquela gargalhada linda e gostosa em meio ao contar e recontar dos fatos. O dom de seduzir era natural, orgânico, limpo. Ela nem se esforçava. E agora a dita cuja tá sei lá aonde fazendo não sei o quê, enquanto eu miro a louça suja e seguro o punhal culinário mediante pensamentos Shakespearianos.

Chave do carro, máscara, tênis sem meia mesmo; elevador, garagem, rua. Perfume urbano. Suspiro, pra aliviar o peito e a dor que me corta as entranhas em flashes. Johnny Hooker tá tocando “volta que o caminho dessa dor me atravessa, que a vida não mais me interessa se você vai viver com um outro rapaz” na rádio e eu penso em esperanças. Fico cafona demais descornado. Nem dá pra chamar assim, já que não houve traição nem motivos óbvios que justifiquem tal abandono. A única possibilidade é que eu sou um babaca e que ela está certa em se ausentar. Vou morrer sozinho, azedo e reclamão, com pena de mim mesmo. Ela me invade novamente, agora dançando devagar no meio do quarto enquanto puxa o lençol pra ficar esticadinho. Almofadas despojadas no meio da cama, eu observo o sol laranja bater na cabeceira. Ela esguicha o bálsamo que abraçaria a gente quando fosse a hora do sono, do chamego, do colar de peles e pêlos. Que miserável! Levou os deleites, deixou um monte de vazio nos armários e um tanto de emaranhados no meu pensar. É agora que entra a terapia? Crise dos quase quarenta e tal, preciso comprar um conversível e uma camisa pólo branca, começar a usar gírias jovens. Meu Deus, como foi que eu cheguei aqui?

Tô na frente do nosso prédio. O carro tomou o rumo do lar sozinho naquela piscada lenta do reavivado “estou indo”. Agora é só “meu prédio”. Tudo no singular, nada com “s”. Sou, estou, vou. Não obstante, me resta o burocrático. Nisso, ainda existimos. De uma forma muito pobre e sem luz, mas é o que me resta. Trabalho com o que tenho. Se eu não assinar a papelada, ela não pode seguir em frente. E se o fizer, vai presa. Bigamia é crime e, como pouquíssimas coisas nesse país mixaria, ainda é levada a sério. Assim, ficamos ambos na mesma situação: eu, preso nela; ela, presa em cárcere especial. Ela é formada em adm e sempre disse que nunca serviu pra muito. Agora servirá.

--

--